Flor de limoeiro
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Sexta-feira, 13 de Julho de 2007
Daniela Coutinho - IT 1º Ano 2º Semestre - Etnologia
Docente: Raquel Moreira
Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril
O termo “Páscoa” deriva do grego Pasca, que deriva do aramaico pasha e do hebraico pesah. É, assim, natural verificar que o nome poderá ter vários significados. A Bíblia relaciona este termo com o verbo pasah, que pode definir-se por coxear ou executar uma dança ritual à volta de um sacrifício ou, mesmo, saltar, passar, perdoar.
É importante referir que a Páscoa é celebrada tanto por cristãos como por judeus de formas distintas. Embora a Páscoa se tenha tornado numa celebração profundamente religiosa, o mais interessante é que a vertente natural se manteve. Note-se que, desde o início da sua existência, o Homem presta a sua homenagem à Natureza, conforme as estações do ano. A Primavera e o seu equinócio marcam o início de uma fase extremamente rica e simbólica em que a fertilidade e a renovação existentes por toda a Natureza são sinais positivos que marcam o fim da estação do ano mais dura e fria e trazem de volta o sol, as cores quentes, tal como os primeiros “verdes”, os quais serão importantíssimos no Verão, tempo de colheitas.
Desta forma, a Páscoa acaba por ter duas vertentes bastante fortes: a celebração religiosa e a celebração da Primavera, do sol, da fecundidade e regeneração, da dádiva da vida e de um novo início[1].
A Páscoa que passo a analisar é um momento muito importante para a freguesia de Sedielos. No concelho do Peso da Régua, inerente a Trás os Montes, como em grande parte do interior de Portugal, o êxodo rural deixou grandes marcas e vestígios de uma outra forma de vida que actualmente só existe lá, nas aldeias abandonadas pelas gerações seguintes e povoadas hoje por uma geração que não voltará a ser renovada.
Em Sedielos, mais precisamente na localidade de Sobre-a-Fonte, encontramos um aglomerado de casas onde há 30 anos atrás existiam numerosas famílias com mais de cinco filhos. Na casa onde passarei a Páscoa existe uma família que já teve 10 membros (o pai, a mãe e os seus 8 filhos). Hoje, esta família tem muitos mais membros, embora o pai já tenha falecido. As novas gerações, das quais faço parte, nunca poderão ter a consciência nem a ideia exacta do que foi viver-se lá permanentemente. A geração dos nossos pais, por sua vez, que foram lá criados, não sentiram que tivessem ali algum futuro e como consequência de tais tempos e de tais transformações no país, partiram assim que puderam para outras cidades, para trabalhar, estudar, para procurar um futuro diferente e com mais oportunidades. A mãe ficou em Sedielos, tal como todas as outras mães e pais.
O seu nome é Leontina Coutinho, as rugas na sua cara indicam uma vida dedicada aos filhos e ao seu pedaço de terra, constantemente cultivado com dedicação. É a minha avó e traz consigo no olhar a progressiva sensação de que já não poderá proporcionar aos seus filhos a segurança de outrora, até mesmo às suas vinhas. “Pensais que ainda posso andar nisto? As minhas mãos estão num bolo, tenho de chamar alguém para me ajudar. Deus me acuda”, a sua conversa com a filha mais nova confirma este facto.
A realidade é que nestas pequenas aldeias vive-se intensamente a religião cristã, existem devoções a vários santos e identidades religiosas que são praticamente o motivo de fé desta população. Santiago é talvez o que tem mais importância em Sedielos: pode-se encontrar no topo do planalto, a capela de Santiago e um espaço envolvente construído para esta população que é também um dos locais mais visitados por população de outras localidades. Também se pode mencionar que existem outros santos como S. José, Santo António e até uma santa que ainda não foi reconhecida, a “Sãozinha”. A devoção por estes santos pode comprovar-se através de azulejos expostos nas fachadas de várias casas.
Assim, é natural confirmar que a Páscoa é um dos momentos anuais mais celebrados e vividos com alegria.
A Páscoa, como se sabe, na religião cristã celebra-se durante 50 dias. O dia principal e o mais importante celebra-se na primeira lua cheia após o equinócio da Primavera, normalmente o dia insere-se no período entre 22 de Março e 25 de Abril.
No Norte e Centro do país pratica-se um ritual importantíssimo, já desde o século XIX: a Visita Pascal. Nesta visita, o protagonista é o pároco da localidade, que visita todas as casas da aldeia para as abençoar a trazer a boa nova. Traz consigo três sacristães, que o acompanham por todo o percurso e que carregam um crucifixo florido, o qual as famílias costumam beijar.
A origem deste hábito não é a mais precisa, mas aponta-se para o século XIX , século em que um pároco começou a visitar as famílias que tinham pessoas doentes. Este pároco benzia as casas e trazia uma palavra amiga, especialmente durante a quadra Pascal. Pensa-se que este pároco possa ter dado origem a esta visita tradicional, ritual realizado predominantemente nestas regiões.
Um dos filhos de Leontina, Manuel Coutinho, mencionou numa conversa comigo que o dia da Visita Pascal é, de facto, um dos dias mais esperados pela população de Sedielos.
Dado que a realização desta visita em todas as localidades da freguesia seria impossível apenas no domingo de Páscoa, esta visita prolonga-se por toda a semana.
Inicia-se no domingo de Páscoa, na primeira metade da freguesia, mais precisamente na localidade de Carvalho e finaliza-se no domingo seguinte, domingo de Pascoela, em Sobre-a-Fonte.
Para a população desta freguesia a ocorrência desta Visita Pascal é tão importante que acaba por ser o motivo principal da celebração. Ou seja, por todas as localidades, as pessoas defendem que a “sua” Páscoa acontece no dia em que o padre oferece a bênção às suas casas e traz consigo o “Senhor”. Portanto, consoante as localidades, ouvimos os habitantes que defendem “A minha Páscoa é na segunda-feira” ou “A minha Páscoa é no domingo de Pascoela”.
Uma das curiosidades de que tive conhecimento é que esta Visita Pascal também pode ser denominada de “Compasso”, visto que, por exemplo, na freguesia vizinha (Vinhós), mais precisamente na localidade da Ermida, a visita era acompanhada de uma tuna e, enquanto caminhavam pelas ruas, existia um ritmo específico e característico.
Outro pormenor a determinar é que, segundo a linguagem popular, esta visita é essencialmente a “visita do Senhor“, ou seja, o “Senhor”, Jesus Cristo, parte da Igreja e abençoa todas as casas da aldeia. O pároco é o que é responsável por levá-lO a todas as famílias.
A Visita Pascal foi realizada, este ano, no dia 15 de Abril e, no dia 14 à tarde parti de Lisboa com destino a Sedielos para comemorar com a minha avó, tios e primos o domingo de Pascoela que, em Sedielos é a “sua” Páscoa.
Chegámos, eu e a minha família, a Sedielos ao fim da tarde. Depois de uma longa viagem, uma refeição ao ar livre, perto das vinhas que ainda estão quase nuas, traz algum descanso. A minha avó, contente por ver grande parte dos seus filhos reunidos, começa a mostrar sinais de preocupação: “Onde ides vós dormir?”.
A minha tia, a filha mais nova que é também minha madrinha, tinha acabado de fazer o Pão de Ló , a sua filha pequena também a ajudava a fazer o bolo de ananás, sobremesa do almoço do dia seguinte.
O Pão de Ló é decorado e colocado à vista da minha avó que, continuamente, perguntava se já se tinha feito o “Bolo para o padre”.
À noite combina-se a hora de alvorada, pois o “Senhor” chegava por volta das 11 da manhã, segundo a minha avó.
Na manhã de domingo, dia 15, às 8 da manhã já quase todos estavam a tomar o pequeno almoço. A minha avó já tinha decorado a porta e as janelas com alecrim[2], já tinha comprado o pão e andava freneticamente de um lado para o outro preocupada com o almoço e a atender telefonemas da família que lhe desejavam a ela e a todos uma Páscoa feliz.
Depois do pequeno almoço começa-se a decorar travessas com fruta, lenha é colocada no forno e, dentro de casa, escolhe-se a toalha rendada mais bonita e “põe-se a mesa para o padre”. Por volta das 9 da manhã ouve-se lá longe três fortes foguetes e a minha avó alerta-nos “Ide-vos arranjar que o Senhor já saiu da igreja e não tarda está aí”.
Na mesa é colocado o Pão de Ló cortado às fatias. Abre-se uma caixa de bombons e colocam-se também na mesa numa taça, acompanhada de vários cálices, assim como de uma garrafa de um bom vinho do Porto.
Na rua sente-se um grande movimento: pessoas deslocam-se para cima e para baixo com folares, flores, garrafas de vinho e caixas com bolos. De repente ouve-se um foguete, este tinha sido mandado de uma casa do cimo da rua. A minha avó apressa-se a mandar todos para a sala e para “beijar o Senhor”.
Antes de irmos para a sala, aproximamo-nos da porta e avistamos o padre e o seu crucifixo florido, acompanhado de sacristães a descer a rua. Tocam uma campainha que alerta a sua chegada. Um alegre “Bom dia! Boa Páscoa! Aleluia Aleluia!” ouve-se e nos olhos da minha avó nota-se uma grande alegria.
O pároco benze a casa e um dos sacristães oferece o crucifixo a cada membro da família presente na sala para o beijar. Após a oração e a bênção, a minha avó acompanha o padre à mesa e pede-lhe que coma e beba à sua vontade. O padre confessa que lhe apetecia era ficar ali, mas que ainda lhe esperava uma longa caminhada. Conversa-se sobre banalidades e ri-se com o apetite do padre e dos sacristães. Comenta-se as suas sapatilhas e que deve ser difícil andar tanto e durante todo o dia.
Após algumas gargalhadas o padre cumprimenta a minha avó e deseja-lhe uma Páscoa feliz. Enquanto fecha a porta, a minha avó suspira e depois, em voz alta, chama-nos “Vinde comer o bolo e beber o vinho!”[3]
Após a fatia de bolo e o cálice de Porto, as atenções viram-se para o cabrito que terá de ser cortado e assado no forno que está lá fora. As batatas que já estão no forno da cozinha começam a deixar um aroma atractivo.
Vão-se ouvindo foguetes por toda a rua. Ao longe nota-se que está a decorrer a feira e, depois de o Cabrito já estar no forno, decide-se ir passear ao seu recinto. Pelo caminho passamos pelo Cruzeiro da aldeia. Nele está representado, através de várias imagens esculpidas na sua base, a via sacra, ou seja, o percurso de Cristo até à sua morte; deitado aos pés de Cristo crucificado está, segundo o meu tio, o discípulo “amado”, que se diz ser S. João. Mais um símbolo da Páscoa e da religiosidade da aldeia.
Ao encontrar vários conhecidos, os meus tios desejam-lhes Boa Páscoa; as senhoras mais velhas cumprimentam-nos com ternura e, com os meus tios, recordam a sua infância e os seus jogos de futebol. Ouve-se por todo o lado “O Senhor já foi a vossa casa?”.
À hora de almoço chega o meu padrinho, que também é padrinho da minha prima mais nova. Traz dois grandes embrulhos: um ovo e um livro para cada uma. Grata pela sua oferta, recordo que o meu pai me contou um dia que quando ele era criança, em Sedielos, a tradição não era apenas esperar por uma prenda do padrinho: os afilhados deviam antes ter a preocupação de procurar os seus padrinhos e pedir-lhes a bênção, como sinal de respeito e também de festejo; seguidamente seria o padrinho que, tradicionalmente, oferecia ao seu afilhado um folar, típico da terra.
Torna-se evidente que a tradição é realmente algo que sofre alterações constantes. A Globalização é, geralmente, o agente responsável, evidenciando a comercialização de símbolos que não os nossos originais; exemplo disso é o ovo de chocolate, o coelho, entre outros. Embora sejam símbolos primaveris e que cá também se celebre a Primavera, as tradições vão-se alterando e muitas das raízes de determinados rituais acabam por se desvanecer no tempo.
Ao almoço come-se com satisfação o cabrito assado acompanhado com arroz tostado no forno num recipiente de barro, assim como as batatas assadas.[4]
Por toda a casa estão flores deixadas em cima de balcões e mesas, flores colhidas do próprio terreno da minha avó, que se oferecem constantemente. A minha mãe comenta feliz “Já é a terceira flor que a Zé me oferece hoje!”. A oferta feita pela sua cunhada simboliza precisamente o que a Páscoa também representa, que é a dádiva e a celebração não só da ressurreição de Cristo, como do renascimento da vida entre a Natureza.
Quando nos sentámos à mesa, por volta das 20h, para jantar, ouvem-se novamente três estrondosos foguetes e comentam uns com os outros “O Senhor recolheu”. Rapidamente as conversas se focam novamente em assuntos do quotidiano mas, na realidade, após mais de 11 horas de caminhada e de Compasso, a Páscoa de Sedielos tinha terminado.
A preocupação era agora onde dormir e a arrumação e organização das bagagens para, no dia seguinte, se regressar a Lisboa, ao Porto, a Guimarães. As cidades em que está à nossa espera outra realidade: trabalho, filhos, escola, actividade e rotina.
Em Sedielos permanece Leontina, queixando-se das suas mãos inchadas. Depois de dar garrafões do seu vinho, batatas e couves, deixa-se ficar perto das suas vinhas e da sua cerejeira florida. “Ide com Deus”.
Bibliografia
BONNARD, Pierre-Émile (1982). “Pascua” in X. Léon-Dufour, Vocabulario de Teología Bíblica. Barcelona: Herder, 647-651
BRAGA, Teófilo (1885). O Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Pub D.Quixote, vol 2
VASCONCELOS, José Leite de (1982). Etnografia Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol VIII
[1] Existiu mesmo a tradição que se baseia na oferta de ovos decorados e pintados à mão, normalmente às crianças. Hoje, os ovos são de chocolate e, geralmente, trazem brinquedos. Embora se tenha perdido a simplicidade e a criatividade e que este símbolo se tenha comercializado, permanece como símbolo da Primavera e da celebração da vida.
[2] O alecrim, flor da época e predominante na Páscoa, é tradicionalmente colocado nas entradas de cada casa, simbolizando principalmente a alegria primaveril e as boas vindas ao Senhor.
[3] Podemos confirmar esta tradição através da seguinte citação de Vasconcelos: “[...]Mal a campainha retiniu no adro da igreja, assombraram às portas e às janelas caras risonhas e curiosas. [...] A campainha não cessava de tilintar alegremente. Enquanto o senhor Prior embebia o hissope na caldeirinha e aspergindo a água-benta em cruz, murmurava caricioso: Boas Festas....Aleluia, Aleluia.....o sacristão oferecia o crucifixo à família ajoelhada, onde todos por sua vez, pousavam um ósculo reverente e comovido. Depois convidavam-nos a descansar um instante. E logo lhes solicitavam que provasem pelo menos um cálice de Porto ou um copinho do Verde, à escolha. Mas o senhor Prior obstinava-se numa recusa afectuosa, enquanto o sacristão apenas embolsado o folar, afilava os dedos sobre a bandeja do doce, esgotando dois copos de enfiada. Forte Calor! Exclamava no fim, para disfarçar a ousadia. Nem parece que se está em Abril!” (Vasconcelos:1982,236)
[4] Esta tradição repete-se também pela região do Minho. “No Alto Minho e arredores de Monção, em todas as famílias, mata-se um cabrito à segunda feira imediata ao domingo de Páscoa. Segue-se o Compasso, ou a visita que o pároco faz aos casais da freguesia depois da Páscoa; no Minho chama-se também o Folar, oferecendo-se ao pároco uma garrafa de vinho, um pão de ló e uma moeda de prata”. (Braga:1885,196)
Créditos:
Fonte: https://castanheira2006.blogs.sapo.pt/5059.html
Fotos:
https://www.cm-pesoregua.pt/pages/613
https://sedielense.blogspot.com/2007_07_08_archive.html
https://castanheira2006.blogs.sapo.pt/no-seio-da-mae-serra-9286
Video: Youtube
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