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As coisas de que eu gosto! e as outras...

Bem-vind' ao meu espaço! Sou uma colectora de momentos e saberes.

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18.12.20

Contos de Natal » A Consoada de Abel Botelho

Miluem

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A Consoada

 

 

Tinham chegado, havia um instante, da igreja.

 

No silêncio álgido da noite retinia ainda alegre o bimbalhar dos sinos. A mesa estava posta — velhos candelabros de cobre, acesos sobre a alva toalha imaculada, e em volta de cogulo fumegando as iguarias. Na cal fendilhada da parede resplandecia, esta noite carinhosamente festoada de flores, uma grande oleografia, em retábulo dourado, de uma das celebradas Virgens de Murillo, fresca, menineira, a alma toda nos olhos, e em volta pelas nuvens sua graciosa farândola de amorinhos cor-de-rosa. O ar estava tépido, embalsamado. E no retângulo negro das vidraças a opaca radiação da noite, basto rasgada pelos farrapos da neve que caía, realizava visualizações fantásticas, luarentos contrastes de diorama.

 

Toca de arrimar na cozinha, ao canto da chaminé, os guarda-chuvas pingando, largam-se as capas, descalçam-se as galochas, ruidosamente sacodem-se os vestidos; enquanto de rodilhão invade a sala a tropeada cantante das crianças; e erguendo-se de salto do escabelo, a esfregar os olhos, a velha serva Leonor, perdida de sono, resmoneia num alívio:

 

— Ora louvado seja Deus!

 

E já à mesa o bom do Simeão se dirigia, direito à grande poltrona de couro.

 

Toma-lhe a direita sua mulher — irrepreensível companheira de cinquenta anos —, uma pequenina e interessante nonagenária, de vagos olhos espirituais e longas mãos de cera; e à esquerda senta-se-lhe a sua boa e paciente Eugénia, a filha mais nova, de preto, fisionomia macerada e longa, repassada toda desta austera diafanidade tranquila que é feita de castidade e abstenção, de isolamento e saudade.

 

Seguia a variegada profusão de toda a mais parentela — os filhos que vieram de longe, empregados no comércio, na magistratura, no Governo Civil em Viseu; um cunhado, capitão do 14; as respetivas esposas, tias, sobrinhas, primas — ao todo trinta e tantos comensais, afora a galhofeira e turbulenta assistência das crianças, que redonditas e chilreantes se aninhavam sobre almofadas postas nas cadeiras, avançando o queixo, cotovelos na toalha, e abrindo para as travessas com os doces uns grandes olhos ávidos.

 

Nos primeiros minutos, um guloso silêncio se intervalou, cortado apenas do discreto tinir de louças e metais. Só o velho patriarca de carinho insinuou à filha:

— Eugénia, então! Vá de pesares hoje…

 

E ela, com infinita tristeza:

— Eu não lhe dizia, pai?…

 

E esmorecida arredava de diante de si o prato, para melhor apoiar na mesa o cotovelo, de antebraço ao alto, e de peso o rosto afogado no lenço, a breve trecho empapado de lágrimas. Era casada há quase sete anos.

 

Casada com o José Ventura, um honrado e perfeito rapaz, vizinho seu na cidade, cuja garbosa imagem logo os seus olhos infantes se tinham acostumado a ver inseparável dos brinquedos. Depois, na adolescência, a mesma comunicativa e franca liberdade afeiçoara-lhes os corações, irmanando-lhes os destinos. Falado o casamento o rapaz era sério, honesto, trabalhador, tinha bens bastantes —, os pais da Eugénia consentiram. Em boa hora, mercê de Deus! Ao cabo de três anos de inalterável bonança conjugal, três inocentes eram o vivo penhor do seu afeto.

 

Mas as coisas da vida iam mal… Pegara brava a moléstia nas oliveiras e nos castanheiros, o «míldio» acabava de lhe devastar a vinha, já os estrangeiros lhe não visitavam a adega, o «pulgão» comia-lhe as searas. A continuarem as coisas por aquele pendor, era uma fatalidade! — Tinha ali assim três anjinhos… E o mais que viria… Tinha obrigação de lhes deixar que comer!

 

Depois de muita hesitação, muita tormentosa luta interior, muita lágrima represada — não havia remédio… Dolorosamente concertou com a mulher e partiu para Lourenço Marques. E ela, a pobre, ficou-se em casa dos pais, paralelamente morta para o exterior, para a luz, para a alegria, arrastando, como um burel, a sua resignada saudade, paresiada na mansidão de uma irremediável tristeza.

 

Com uma resignação de freira, alheia por completo ao mundo, vivendo na perpétua lembrança do marido, na exclusiva preocupação dos filhos, passou anos Eugénia sem sair de casa, levando uma vida toda crepuscular, na inteira abdicação do seu querer, colada ao dever como a lapa ao rochedo, iluminada e forte sempre a alma do alimento ázimo do Passado, o seu fino rosto austero idealizado por uma transcendente, uma inabalável expressão de confiança e de doçura… Sem um queixume, sem uma revolta, sem uma indignada apóstrofe ao Destino, ela sofria mas esperava, esperava sempre… Forte dessa poética submissão, dessa fidelidade sem termo, essa irredutível e santa conformidade de que a nossa província ainda conserva o segredo. Embalde vinham as amigas desafiá-la: «que estava dando cabo de si… Não tinha jeito nenhum…

 

Que faria se fosse viúva! Esquivava-se invariável às mais inocentes diversões. Ouvia, ouvia tudo, num desdenhoso silêncio, e ao cabo abanava negativamente a cabeça, cerrando as pálpebras.

 

Escrevia amiúde o marido. Sempre cartas consoladoras, ainda era o que valia! Passados os dois primeiros anos, estava fazendo rapidamente fortuna. Tivera uma hospedaria; agora era já senhor de prédios, tomava empreitadas de construções, era grande acionista de uma companhia mineira. O Simeão esfregava as mãos, contente, e exclamava, descendo aos netos os olhos húmidos:

— Abençoada resolução!

 

Eugénia, porém, nas suas cartas, extensos e adoráveis breviários de coisas de família — a saúde dos pais, a saudade que a ralava, os progressos, as graças, as doenças dos filhinhos —, passava sempre de alto, num leve roçagar de desdém, pela questão de interesses, e invariavelmente terminava com esta frase:

— Quando te tornarei eu a ver?…

 

Ultimamente anunciara ele uma próxima vinda à metrópole — para matar saudades, para revigorar a saúde. Dizia o paquete em que vinha, designava o dia da partida. Foi então na modesta casa do rossio de Pinhel uma alegria doida… Não se falava noutra coisa; aos quatro ventos da cidade se confiou a consoladora notícia. Dia por dia com alvoroço se contava o tempo de viagem do vapor. Liam-se com avidez no Século os telegramas marítimos, a ver quando davam conta das sucessivas estações da sua rota. Sem entender nada de geografia, arranjou no entanto Eugénia um mapa, e aí, de olhos húmidos, como de instinto ia seguindo o progressivo e moroso avançar do ídolo da sua alma. Fez roupitas novas aos pequenos, para aparecerem ao pai. Dava repetidas ações de graças ao Céu; o seu entusiasmo, a sua fé, o seu amor não conheciam limites.

 

Pela mais feliz das coincidências, acontecia que o seu José devia ter desembarcado na véspera em Lisboa, e chegaria a casa, portanto exatamente naquela mesma noite de Natal! Eugénia queria de força ir, com os filhos, esperá-lo abaixo, à estação, a Vila Franca das Naves. Entretanto, frustrou-lhe a resolução a inclemência do tempo. A família opôs-se.

 

— Sempre eram 18 quilómetros de mau caminho, desabrigado, ínvio… E a chuva, o vento, a neve… Uma imprudência! Seria o mesmo José o primeiro a censurar…

 

Resignou-se portanto a ficar. Mandaram-lhe à estação a melhor alimária de cavalaria que havia na terra, a mula do senhor abade, cedida com a mais pronta decisão; e para o espírito inquieto, para a alma ansiosa de Eugénia se foram então fechando interminavelmente as horas. Repercutia-lhe doloroso o bater da pêndula no pulsar do coração, e o seu adorado marido não vinha!

 

Por fim, perdera já por completo a esperança. E agora à mesa perante a ingénua e comunicativa alegria do momento, a dolorida tristeza da sua alma cerrava-se cada vez mais intensa e mais profunda.

 

Entretanto, continuava meigamente o pai a querer animá-la:

— É que o vapor não entraria a barra ontem, filha… Isso que admira, com o mau tempo que faz?…

 

— Sei lá o que foi!

 

— É isto. Não podia ser outra coisa… Se tivesse entrado, bem vês… O comboio passa em Vila Franca às 8… Depois, pra cima, a mula do senhor abade desunha bem… São três horas da estação aqui.

 

— Ora! Nem que viesse a pé…

corroborou o capitão

— já estava farto de cá estar!

 

— Tudo isto é assim, tudo muito belo…

redarguiu, apreensiva, Eugénia

— mas é que eu não faço senão pensar…

 

E de repente, depois de uma hesitação, com ar aflito:

— Ai, Deus do Céu! Receio muito que lhe tenha sucedido alguma coisa…

 

— Então porquê?…

interrogou mansamente, com uma bondosa doçura incrédula, do outro lado do Simeão, a espiritual velhinha.

 

— Ora, a mãezinha bem sabe… As mulas diz que são amaldiçoadas. Antes queria que lhe tivessem mandado outro animal! Porque não pediram ao médico?

 

— Está sempre a precisar… 

aclarou o pai.

— Isso são histórias!

 

— Não são tal!

insistiu Eugénia com vigor.

— No Presépio a vaca chegava palhinhas ao Menino, para o agasalhar, e vai a mula comia-as. Por isso a Senhora a amaldiçoou.

 

— É verdade! É verdade! Assim diz a mestra…

aqui acudiu com interesse o filho mais velho, o Josezito, abrindo em claras convicções os olhos.

 

— Pois sim, filha…

insistia com amor o velho a derivar

— mas come…

 

— Não tenho vontade…

 

— Estes bolos de bacalhau.., estão ótimos!

 

— A mim amargavam-me como piorno!

 

E o bom do pai, largando a travessa, desistia.

— Valha-te Deus!

E, sempre no empenho de espertar a animação, arredando daquela festa as sombras, agora interrogava o neto:

— Então que histórias foram essas que te ensinou a mestra?

 

— Sim senhor!

acudiu pronta a criança, com o mesmo tom de convicção escampe.

— Sei essa história toda da fugida pró Egipto. Ainda há mais coisas… Ao atravessar a burrinha um tremoçal, quase seco, as ervas faziam muito barulho, dando sinal aos perseguidores… E vai a Senhora amaldiçoou-as também.

 

— Meu anjinho!

exclamou com ternura a avó desvanecida.

 

— E também está amaldiçoada a perdiz

continuou muito sério o rapaz.

 

— Só a pena…

— Conta lá…

disse-lhe a mãe, momentaneamente distraída.

 

— Foi assim… Quando Nossa Senhora fugia, um bando de perdizes, levantando-se-lhe na frente, assustadas, espantou-lhe a burrinha e deu sinal ao inimigo.

Vai a Senhora exclamou: «Malditas sejais!»

São José perguntou: «Por inteiro, carne e tudo?»

E a Virgem respondeu: «Não, coitadas! A carne, não… Só as penas.»

Aplaudiram todos, encantados, o pequenino narrador, cujos lábios de cereja a mãe comia de beijos.

 

De súbito — que estranho estrupido é este?! — no pleno sossego daquela hora alta, áspero e vibrante ressoou no pátio um significativo tropear de ferraduras.

 

Logo um trinado silvo familiar, num segundo, quando, à instantânea impulsão do espanto, mal tinham tido ainda os convivas tempo de se erguer da mesa, já o José Ventura invadia de rompão a sala e estrangulava a mulher de comoção nos braços, balbuciando entre soluços de escachoante amor:

 

— A Geneta! A minha querida Geneta! Enquanto, pequeninos e dobrados, todos em lágrimas, dele se aproximavam os pais, trémulos na ansiosa suplicação de uma carícia; e aturdida, boquiaberta, a velha Leonor exclamava, limpando os olhos à serguilha do avental: — Parece mentira!

 

— Mentira me parece a mim mas é eu estar de volta outra vez!

bradava na veemência da sua ardente emoção o rapaz.

— Aqui assim na nossa casa… Junto da minha mulher, dos meus filhos, dos meus velhos, dos amigos!…

 

E ia e vinha, a um e outro lado, irrequieto, gárrulo, feliz… Dava abraços, palmadas, beijos, entregava-se, dispersava-se… Num trasbordar suave de efusão prodigalizava o melhor e o mais íntimo do seu ser, irreprimivelmente expandia a sua sentimentalidade represa de tantos anos.

 

— Mas que horas são estas de aparecer?…

 

— Com efeito!

 

— Já ninguém fazia conta de ti!

 

— Que ralações aqui iam!…

 

— Faço ideia… Bem me lembrou!

disse o José Ventura, olhando com amor a mulher.

— Mas que querem?… O comboio vinha atrasado, os caminhos estão péssimos!

 

— Louvado seja Deus Nosso Senhor!

murmurou de mãos postas a santa velhinha, considerando o filho.

 

— Como tudo isto me parece bem!

exclamou num ímpeto o recém-chegado, sentando-se, com todos os mais, à mesa.

— Que bela compensação a todas as minhas penas e trabalhos! Que saúde ao corpo, que refrigério à alma!

 

— Comes?

perguntou-lhe o pai.

 

— Ai, não! Trago uma fome de pedras…. Vou já começar aqui por estes ovos verdes.

 

— Agora também eu como!

rompeu, sentando-se junto dele, a mulher.

 

E reatando conversa, patriarcalmente, como se de princípio também ali estivesse, como se nada de anormal, desde o começo da ceia, se houvera ali passado, disse ainda, todo natural, o José:

— Mas que conversa era essa então com que estavam, de maldições?… Eu ainda ouvi…

 

— Falava-se de quando foi da fuga da nossa Senhora, com São José e o Menino. Diz que ela amaldiçoara então a mulinha do Presépio, os tremoços, as perdizes…

— E então dos noitibós e das cotovias, não sabem?… Disse o José, sorrindo.

 

— O quê!?

 

— Ainda me lembro!

 

— Sabes mais do que nós…

 

— Pois então! Contava-me aquela nossa criadita velha, a Emília… Ora espera, como era?… Ah! Quando Nossa Senhora ia a caminho, os bisbilhoteiros dos noitibós iam na frente, a gritar:

«Ela aqui vai! Ela aqui vai!»

 

E atrás as cotovias, apagando as pegadas da burra com as patitas, diziam:

«Mentira! Mentira!»

Por isso Nossa Senhora abençoou estas e amaldiçoou aqueles.

 

— É verdade, mamã?

perguntou com interesse o Josezito.

 

— O papa nunca mente.

 

E a cada instante o papá, radiante, cheio de si, na amorosa incidência da atenção de todos, e com os filhos pendurados em cacho dos ombros, do colo, do pescoço, demandava a mulher com os olhos rasos de água, numa expressão fundente de ternura:

— A minha Geneta!

 

 

Abel Botelho

 

 

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Foto: Wikipédia

 

 

 

 

 

18.12.20

Abel Botelho – Diplomata e Escritor

Miluem

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Abel Botelho – Diplomata e Escritor

 

Abel Acácio de Almeida Botelho nasceu em Tabuaço, a 23 de Setembro de 1856, filho de Luís Carlos de Almeida Botelho, major de infantaria e professor do liceu de Vila Real e de Maria Preciosa de Azevedo Leitão.

 

O pai destinara-o a frequentar um curso universitário, mas o seu falecimento prematuro (Abel Botelho ficou órfão de pai aos doze anos) ditou outro rumo na carreira do jovem Abel que, entretanto, entrou para o Real Colégio Militar, na qualidade de pensionista do Estado. Cursou o colégio de 1867 a 1872, ingressando depois na Escola Politécnica de Lisboa até 1876. Entre 1876 e 1878 frequentou o curso de Estado Maior na Escola do Exército. É a partir dessa altura que começou a afirmar a qualidade do seu talento de jornalista, crítico de arte, dramaturgo e escritor, o que levou Luciano Cordeiro - professor de Literatura e Filosofia do Colégio Militar, e um vulto destacado do jornalismo e das letras - a incentivá-lo.

 

Abel Botelho fez estreia literária em 1877 na Revista Literária, do Porto, em poesia, tendo também assinado vários trabalhos sobre Filosofia da Arte que tiveram certo impacto nos espíritos mais cultos da época. Casou em 1881 e foi promovido a capitão nesse mesmo ano.

 

Em 1903 elaborou um Dicionário de abreviaturas, em latim, para uso antropométrico, que mereceu as maiores referências elogiosas. Em latim, por se prestar melhor à sua internacionalização. Logo que teve conhecimento do Dicionário, a Procuradoria Régia da Relação do Porto fê-lo adoptar em todas as comarcas dependentes dela.

Foi colaborador assíduo do Diário da Manhã, onde deixou vários contos que mais tarde coligiu e reuniu no livro “Mulheres da Beira”, porventura o mais divulgado de Abel Botelho, granjeando-lhe grande popularidade. Colaborou noutros jornais e veio a dirigir o jornal “Repórter”, até à sua extinção.

 

Escreveu uma comédia, mordaz, satírica e critica em relação à sociedade do tempo, intitulando-a de “Jucunda”. Foi representada pela primeira vez, no Teatro Ginásio, seguindo-se a peça “Vencidos da Vida”, uma comédia de Cherge em três actos, que obteve enorme êxito e ruído da crítica lisboeta. Foi proibida depois de várias representações, por ter sido considerada inconveniente porque visava personalidades conhecidas da cena política, inclusivamente um ministro. Classificada a peça de inconveniente "por ofender a moral pública" (!) foi retirada de cena.

 

Escreveu ainda as peças “Claudina” e a “Imaculável”, representada em 1897, também com enorme sucesso, no Teatro D. Maria, causando, do mesmo modo, escândalo junto dos meios conservadores alfacinhas.

 

O seu primeiro livro impresso (1885) intitulou-se de "Lira Insubmissa". Mas a maior projecção alcançou-a por via do romance, escrito através de vários volumes que fazem parte do ciclo "Patologia Social": “O Barão de Lavos”, “O Livro de Alda”, “Amanhã”, “Fatal Dilema” e “Próspero-Fortuna”. “O Barão de Lavos” revelou ser um autêntico best-seller, tendo esgotado em quinze dias.

Em 1900 publicou a novela “Sem Remédio”, e em 1904 o romance “Os Lázaros”, que havia saído em folhetins no jornal "O Dia" e causou pruridos no meio social e aristocrático de Lisboa.

 

Modernamente, Abel Botelho foi classificado de "iniciador do naturalismo de Emílio Zola aplicado à ficção portuguesa".

Alguns dos romances de Abel Botelho tiveram várias edições e foi traduzido para italiano, francês e castelhano. Deixou invejável obra literária e ficou na história da literatura como um dos seus grandes expoentes do último século, do período do Neogarretismo, ou, se quisermos, do agrupamento político-literário comprometido com os ideais da República, na fase mais amadurecida do militar-escritor Abel Botelho.

 

O compositor Armando Leça escreveu a música para acompanhar, de entre outros, o filme “Mulheres da Beira”.

 

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Foto: https://commons.wikimedia.org

18.12.20

Conto Transmontano - O Amo, o Criado e o Queijo

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O Amo, o Criado e o Queijo

 

 

Havia certo senhor, muito abastado, que tinha numa das suas quintas um caseiro, por quem tinha uma certa consideração, por este ser muito sério nas suas contas. Acontecia que, quando o caseiro não podia ir a casa do amo prestar contas, por afazeres ou qualquer outro motivo, mandava o filho mais velho, por este também já ser competente do que lhe incumbiam.

 

Um dia, o pai diz ao filho:

- Zé, amanhã vais levar esta importância ao amo, e como vais levar-lhe dinheiro, é capaz de te pôr de comer. Aceitas, mas se às vezes te puser queijo, e que esteja inteiro, é melhor não o «incertares» porque parece mal. Lá aguentas mais um bocado, e vens comer a casa. Ora isto era o que o amo queria, pois parece que era mais apertado do que uma «abífora».

 

Tantas vezes o Zé foi levar as contas ao amo, como este lhe punha de comer, mas sempre um queijo inteiro. E o pobre do rapaz, vinha sempre em branco, e como se costuma dizer com os cantares do Verão.

 

E quando o bom do Zé chegava a casa, o pai lhe perguntava:

- Então, rapaz, comestes?

 

- «Num» senhor.

O amo põe-me sempre o queijo inteiro, e eu, já se sabe, não lhe toco, e boa fome que trago.

 

Diz-lhe o pai:

- Deixa que para a próxima vou lá eu.

 

E assim foi. As próximas contas a prestar, foi lá o bom do caseiro. E lá estava o dito queijo inteiro, que o amo lhe pôs na frente ao seu fiel criado.

 

- Coma, diz o amo.

 

O caseiro, que já estava bem avisado com o que se tinha passado já tantas vezes com o filho, o que fez?

 

Pegou no queijo e partiu-o em quatro partes iguais. O amo viu aquilo, e ficou espantado, dizendo:

 

- Olha que isso é queijo.

 

Resposta imediata do caseiro.

- Bem o beijo. E comeu a primeira parte.

 

Pegou na segunda, e o amo mais admirado ficou, e disse:

- Este é caro.

 

O criado respondeu:

- Mas vale bem o dinheiro.

 

O amo já nem acreditava no que via, pois o caseiro pegou na terceira parte, e o amo diz-lhe:

- Olha que só tenho este.

 

-P’rá agora chega, diz o criado.

 

Em face do que o amo estava a ver, foi ao curral onde se encontrava o cavalo preso, e soltou-o de propósito. Veio junto do criado, que já se preparava para comer a quarta parte e disse-lhe:

- O cavalo soltou-se e vai-se embora, e já não o agarras.

 

- Diz o criado, metendo a última parte ao bolso. Então vou andando e comendo.

 

Este chegou para o amo. Daí em diante, o patrão já punha de comer aos seus criados, mas nunca um queijo inteiro.

 

Será certo? Talvez! Contada ao serão por minha avó materna, em 1932.

 

RECOLHA (1985) de Maria Assunção Pereira Rodrigues – Serra de Nogueira.

 

 

Fonte: Cancioneiro Transmontano 2005

Edição: Santa Casa da Misericórdia de Bragança