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As coisas de que eu gosto! e as outras...

Bem-vind' ao meu espaço! Sou uma colectora de momentos e saberes.

As coisas de que eu gosto! e as outras...

11.12.20

Ourique @ Lendas de Portugal - O Milagre de Ourique

Miluem

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O Milagre de Ourique

 

Conta a lenda que a Batalha de Ourique foi o momento decisivo da independência do pequeno condado portucalense e que, no fim da peleja, D. Afonso Henriques foi aclamado pelos combatentes como Rei.

 

Era noite. Véspera de batalha. Os guerreiros tentavam descansar. Nas coloridas tendas mouras o movimento fora intensíssimo durante todo o dia.

 

De cinco reinos haviam chegado homens aguerridos, decididos a não deixar progredir o pequeno exército dos cristãos. Tinham vindo muitos de Sevilha e de Badajoz para se juntarem à hoste composta por gentes de Elvas, Évora e Beja. Diz-se mesmo que tinha vindo gente de além-mar. Durante o dia, não tinha havido descanso para ninguém.

 

As setas tinham sido cuidadosamente afiadas e guardadas nas aljavas. Os velozes alfarazes da cavalaria moura tinham tido ração suplementar e relinchavam respondendo aos puros-sangues árabes dos grandes senhores que, impacientes, esperavam pela acção, pelo combate. Enfim, era noite e a algazarra que pairara todo o dia sobre o arraial esmorecera um pouco e só se ouvia como que um zunir de moscas.

 

No acampamento cristão pairava o silêncio. Também os ginetes da guerra estavam prontos e impacientes, as espadas tinham sido afiadas, os peões haviam experimentado as bestas para que tudo corresse como desejavam. Os guerreiros descansavam nas tendas, recostados em leitos improvisados com as peles dos animais mortos, lá mais ao norte, nas selvas que bordejavam as suas tendências e propriedades.

 

Também Afonso Henriques estava recostado na sua tenda. Dera ordem para que ninguém o incomodasse. Não conseguia dormir. Pensava na batalha do dia seguinte, na enorme cópia de gente moura contra a sua minúscula hoste. Corria até que o exército árabe tinha uma ala de mulheres guerreiras... Mas, era necessário vencer... Deus se encarregaria de mostrar ao infiel o seu poder pelo braço do guerreiro. Semi-adormecido, apareceu-lhe como que um sonho, um ancião.

Visão_de_D._Afonso_Henriques_na_batalha_de_Ourique.png

Fez sobre ele o sinal-da-cruz, chamou-lhe escolhido por Deus e alertou-o da batalha.

 

Entretanto, apareceu-lhe um escudeiro, que vinha dizer-lhe que estava ali um velho que

 

queria falar-lhe com muita urgência: Afonso Henriques viu, diante dos olhos, bem despertos, o velho do sonho:

- Tu, outra vez? Quem és afinal, ancião? O que me queres?

 

- Quem sou não interessa...

Acalma-te e ouve o que venho dizer-te da parte de Jesus Nosso Senhor: daqui a instantes, quando ouvires tocar os sinos da ermida onde há já sessenta e seis anos vivo, deves sair do arraial, só e sem testemunhas.

É isto o que Ele manda dizer-te! Antes do guerreiro abrir a boca, o velho desapareceu na noite, sem deixar rasto.

Daí a instantes, soou, efectivamente, o sino da ermida e Afonso Henriques pegou na espada e no escudo, com gesto quase automático, saiu da tenda embrenhando-se na noite, sem destino, só, como lhe fora recomendado.

BatalhaOurique.jpgPintura de 1793 de Domingos Sequeira

 

Subitamente, um raio iluminou a noite e de dentro dele saiu uma cruz esplendorosa.

Ao centro estava Jesus Cristo rodeado de anjos.

Afonso Henriques ajoelhado, deixou-se ficar boquiaberto, sem saber o que dizer, sem se atrever a quebrar o instante, até que dentro de si, ouviu Jesus dizer-lhe:

- Afonso, confia na vitória de amanhã.

Confia na vitória de todas as batalhas que empreenderes contra os inimigos da Cruz.

Faz como a tua gente que está alegre e esforçada.

Amanhã serás Rei...

Apagou-se o céu e a visão celestial desapareceu, como viera.

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No dia seguinte a batalha foi terrível. Os mouros eram aos milhares e avançavam ferozmente contra os guerreiros de Afonso Henriques.

 

Ao Primeiro embate muitos homens caíram no chão trespassados pelas lanças.

 

Puxou-se então por espadas e alfanges e a planície foi invadida por um tinir de ferros misturados com a gritaria de toda aquela multidão e os relinchos doloridos dos cavalos feridos.

 

Durante muito tempo, foi um verdadeiro inferno. Os guerreiros cristãos, porém, levaram a melhor.

 

Os mouros sobreviventes, fugiram pela planície fora, deixando os cadáveres naquele imenso chão. Do lado cristão também eram muitos os mortos e feridos, mas os sobreviventes proclamavam a vitória, gritando:

 

-Real! Real! Por Afonso, Rei de Portugal!

 

Diz a tradição que nesse momento e em memória do acontecimento, o rei pôs no seu pendão cinco escudos, representando os cinco reis mouros que derrotara.

 

Pô-los em cruz, pela cruz de Nosso Senhor e dentro de cada um mandou bordar trinta dinheiros, que por tanto vendera Judas a Jesus Cristo.

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Esta é a patriótica lenda com que os portugueses quiseram perpetuar um facto que na realidade foi bem diverso.

 

https://www.uc.pt/

Fotos:

Wikipedia

http://purl.pt

 

11.12.20

Contos de Natal » O suave Milagre de Eça de Queiroz

Miluem

Eça_de_Queirós_c._1882.jpg

 

O suave Milagre

 

Ora entre Enganin e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel.

O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ele o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo.

Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho secara há muito o azeite.

Dentro da arca pintada não restava um grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira.

Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!

Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão.

A mulher escutava, com os olhos famintos. E esse doce rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava?

O mendigo suspirou.

Ah esse doce rabi! quantos o desejavam, que de desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia.

Obed, tão rico, mandara os servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesareia.

Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo.

E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha.

 A mãe retomou o seu canto, a mãe mais vergada, mais abandonada.

E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar duma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse rabi que amava as criancinhas, ainda as mais pobres, sarava os males, ainda os mais antigos.

A mãe apertou a cabeça engelhada:

- Oh filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do rabi da Galileia?

 Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazim até ao país de Moab.

Sétimo é forte e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde Hébron até ao mar! Como queres que te deixe?

Jesus anda por muito longe e nossa dor mora connosco, dentro destas paredes e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?

A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:

- Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!

E a mãe, em soluços:

- Oh meu filho como te posso deixar! Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens.

Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce rabi.

Oh filho!

Talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.

De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:

- Mãe, eu queria ver Jesus...

E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:

- Aqui estou.

 

Eça de Queiroz

 

www.fd.unl.pt

foto: wikipédia